Coaripolis

sexta-feira, outubro 22, 2004

Como é bom lembrar a beleza que temos

Muitas vezes nós amazonidas por estarmos habituados a paisagem do nosso mundo esquecemos de gozar do paraíso que temos. Trago aqui, apesar de longa um artigo do Dr. Drauzio Varella, que fala dessa beleza. Infelizmente como diz um ditado, só valorizamos o que temos quando perdemos!

Raiou, resplandeceu, iluminou
Habituado ao cinzento dos prédios e às fendas de céu que se esgueiram entre eles na cidade de São Paulo, meu olhar se perde reflexivo numa volta de 360 graus por aquela imensidão desabitada da Amazônia

Por Drauzio Varella - Autor do livro que gerou o filme "CARANDIRU"

Quando acordei, estava escuro, a silhueta da floresta amazônica se perdia de vista às margens do rio. Vindo de pontos esparsos, os pios dos primeiros pássaros quebraram o silêncio da madrugada.

Fui buscar o computador. Sentei-me na proa do barco-escola ancorado junto à boca do rio Cuieiras, afluente do Negro, decidido a escrever uma descrição como as do tempo da escola primária no Liceu Acadêmico São Paulo, no Brás, com a pretensão talvez descabida de tentar descrever o indescritível e compartilhar com os leitores a beleza suprema de uma aurora nesse canto do Brasil, intocado como antes da chegada dos portugueses.

A melodia do canto de uma ave coincide com o aparecimento gradual de um brilho fosco, cinza-prateado, mal perceptível acima do contorno das árvores, logo à minha direita. Lentamente, a partir dessa área, um facho prateado se espalha em formato de concha, ganha intensidade luminosa, realça a linha sinuosa que une as copas das árvores situadas à sua frente e se projeta contra a mata da margem oposta. Nela, tornam-se discerníveis a massa de folhagem, os troncos mais altos e uma nesga de praia esbranquiçada. Impávido, o rio permanece negro, alheio à timidez dos primeiros passos que a aurora ensaia no leste.

Habituado ao cinzento dos prédios e às fendas de céu que se esgueiram entre eles, meu olhar se perde reflexivo numa volta de 360 graus por aquela imensidão desabitada. Quando retorna ao ponto de partida, encontra o prateado mais reluzente e os primeiros tons alaranjados a colorir a textura delicada das nuvens mais próximas, que se desgarram da luz central. Em resposta imediata a essa mudança de tonalidade, o verde da margem oposta se torna mais definido, e os troncos das árvores altas emergem soberbos, alaranjados, no interior da mata.

Uma cortina de névoa translúcida se desprende da superfície das águas, penetra as margens da floresta e borra com magia os limites do horizonte. A luminosidade antes homogênea do nascente adquire um núcleo central amarelado mais intenso, já capaz de se intrometer entre os galhos das árvores em seu caminho, iluminar com total nitidez a margem oposta e se refletir com suavidade nas cristas das ondulações miúdas do rio, movidas por um sopro suave de vento, que bate de encontro à pele; sensação de prazer inacessível na cidade.

O azul-escuro do céu clareia a cada minuto, ao mesmo tempo em que as nuvens alaranjadas se irradiam em círculos que desbotam à medida que se afastam pelo espaço, até se desfazerem em fiapos de algodão esgarçados no ato de tentar cobrir uma área de azul maior do que seria possível.

A bruma espessa que repousa sobre a superfície do rio até onde a vista alcança começa a se esvair à distância, com sutileza, para se aglomerar concentrada em bolsões que pousam ao acaso no seio da floresta. O rio se alarga, afunila e lá longe perde a nitidez no meio dela.

No centro geométrico da claridade nascente, o dourado ganha força, machuca a vista, define melhor o contorno das árvores à sua frente e dissemina infinitas tonalidades de verde nas folhas das árvores da margem contrária. As águas baixas, nesta época do ano, deixam expostos recortes de praias de areão batido, nas quais jazem troncos contorcidos em formas bizarras, como esculturas de um museu de arte que submergirá com seu acervo quando vierem as chuvas.

No rio, a amplitude das ondas diminui, e as águas se aquietam para formar um imenso espelho que reflete os céus e a floresta projetada contra ele, em imagens virtuais indistinguíveis dos objetos que lhes deram origem. Em questão de segundos, desponta o sol como uma bola de fogo, agride impiedosamente o olhar desavisado e sobe com pressa, resplandecente, para impor seu domínio absoluto. Um reflexo de ouro ondulante forma um longo cone invertido na superfície âmbar do rio. No céu, o azul-anil toma conta do espaço, e as nuvens de algodão alaranjado atingem a região do poente tão espalhadas e tênues que é preciso firmar os olhos para reconhecer-lhes as cores.

A um palmo acima do dossel da floresta, a bola incandescente cega quem ousar admirá-la; o movimento do feixe de ouro cintilante refletido no rio, também. O vento ameno acaricia a pele aquecida pela incidência dos raios solares. Um depois do outro, dois botos saltam fora da água e deixam um rastro de ondas concêntricas. Longe, no horizonte da última curva do rio, uma figura humana surgida sabe lá Deus de onde parece um graveto equilibrado na proa de uma canoa a remo.