Coaripolis

quinta-feira, setembro 16, 2004

Ainda tem gente que pensa

PREDADORES
Numa região governada por uma “elite mercenária”, depois das festas, “a vida volta ao seu martírio”, diz Milton Hatoum. Hoje um dos mais importantes escritores brasileiros, Milton Hatoum nasceu e passou a maior parte da sua vida em Manaus. Em 1999, pediu demissão da Universidade Federal do Amazonas, onde lecionava, e mudou-se para São Paulo. “Queria sair de um lugar que estava me deprimindo”, explica Hatoum, que considera a Amazônia um “Jardim do Éden” governado – sobretudo no caso do Amazonas – por uma elite “incompetente e mercenária”. Prestes a lançar o romance Vila Amazônia, Hatoum falou a CartaCapital sobre os problemas da região.
Por que a vida em Manaus era deprimente?
Milton Hatoum: Manaus virou um monumento de viadutos e edifícios, a caricatura de uma modernidade manca. O Amazonas é um estado rico, graças à Zona Franca, mas as condições de vida da população são tenebrosas. Do ponto de vista político e social, eu vejo avanço em todo o Brasil, menos lá. Enquanto outros estados, como o Pará e o Amapá, passaram por mudanças políticas, o Amazonas é dominado pelo mesmo grupo há décadas. Trata-se, com honrosas exceções, de uma elite incompetente e mercenária, composta por gente de lá mesmo e por aventureiros vindos de outras regiões. Você quer contestar a barbaridade, a demência dos poderosos e não consegue. É enlouquecedor.
Como o senhor vê o velho impasse amazônico entre a necessidade do desenvolvimento e a luta por preservação ambiental?
Dois Dramas. Miséria choca mais que desmatamento. Para mim, a miséria é mais chocante que o desmatamento. Volto ao exemplo emblemático de Manaus, uma cidade de 1,6 milhão de habitantes, onde 50% são favelados e menos de 15% têm esgoto. A 1 quilômetro do maior rio do mundo, falta água nos bairros pobres. Para onde vai o dinheiro do imposto? É um crime plantar soja onde há floresta. A exploração da natureza deve ser sustentável. Mas o pior é ver a degradação da população.
O senhor já foi a festas folclóricas do interior da Amazônia?
MH: Já. Eu conheço o interior do Amazonas. É paupérrimo. Antes e depois da festa, a vida volta ao seu martírio. Mas a elite e o povo do Pará souberam preservar mais a cultura popular. Manaus foi sempre uma cidade daquele que não quer se fixar lá, do predador que explora e vai embora. O que houve foi a aliança de uma elite fragilizada com os poderosos da Zona Franca, que dão as cartas. Os políticos ficaram reféns desse capital, que é de fora, seja do exterior, seja do Sul-Sudeste.
Como o Amazonas deveria promover seu desenvolvimento?
MH: Muita coisa pode ser feita em matéria de exploração sustentável dos recursos naturais. Mas a principal vocação do Estado é para o turismo. Uma vocação desperdiçada pela elite dirigente que só se interessa em proteger e fortalecer a Zona Franca. Da forma como o Amazonas tem sido governado, se um dia a Zona Franca acabar, o Estado estará liquidado.
Fonte: Revista Carta Capital